MINHA VIDA NO ORFANATO


 Número 37 era o meu número no orfanato, era como me chamavam na lista de presença e em todo o tempo que vivi lá, era meu nome, minha identificação, era eu e continua sendo até hoje meu pseudônimo.

Orfanato Instituto João Alves Afonso

Lembro-me de estar em pé no centro de uma sala enorme, mobiliada com móveis antigos e escuros e com lindos anjos pintados no teto. Não entendia o que estava acontecendo e nem porque eu estava ali. 
Minha tia Odenir estava  conversando com uma mulher que tinha um pano cinza na cabeça e uma espécie de vestido   de mangas compridas que ia até os pés.
Depois vim à saber que era a Madre superiora,  irmã Florice, eu adorava a irmã Florice, ela era meiga, gentil, simpática era uma mãe.
 Minha tia me deixou lá e foi embora.

Uma nuvem toma conta de minhas lembranças, mas aos poucos vou  lembrando e colocando no papel um pouco da minha história.

Salão de entrada

Quando cheguei no Orfanato IJAA- Instituto João Alves Affonso, tinha apenas 6 anos de idade. 
Chorei todos os anos que fiquei internada lá. Não entendia porque estava ali, já que tinha pai e mãe....


Quantas vezes andei em círculos por este jardim, admirando as flores e as joaninhas, tão singelas e pintadinhas de vermelho.
 Tínhamos o direito de passear neste jardim de 15 em 15 dias.

Quantas vezes pensei em fugir...

Éramos umas 300 meninas, eu acho, não tenho muita certeza. 


Meu  número era 37, não sei qual era o critério que usavam para dar os números as crianças.


Assim que cheguei, andei por um corredor e subi uma escadaria escura muito bonita, fui levada ao andar de cima  para conhecer meu armário, o banheiro e o dormitório. 


Cada uma das meninas tinha um armário para guardar as roupas, uma saboneteira e uma escova de dentes.



 Meu armário ficava do outro lado, em frente a esses que aparecem no centro. Armário de número 37. 
Do lado direito dos armários que aparecem  na foto acima, ficava o banheiro, um banheiro imenso com várias pias e vários boxes onde tomávamos banhos sempre duas a duas ou mais, banho gelado.

Quando percebi o que tinha acontecido, senti uma solidão e um abandono tão grande que meu coração parecia se despedaçar.


 Estava abandonada por minha família em um orfanato com 300 crianças. Grande tristeza tomava conta de meu coração, muitas saudades de minha mãe, saudades de casa.
Jaqueira do pátio interno
As visitas eram de 15 em 15 dias. 
Ficávamos esperando uma das irmãs nos chamar, num pátio que ficava nos fundos do prédio principal do orfanato, lá  tinha uma  imensa jaqueira.
 Sempre que a visita de alguma menina chegava, a  irmã Custódia chamava pelo número.
Cada vez que a irmã aparecia na porta pra chamar uma de nós, meu coração apertava de ansiedade. 
A tristeza aumentava a cada minuto que passava e não me chamavam.

 Número 37, como eu queria ouvir chamar meu número naquele momento.

A hora da visita terminava e não me chamavam ninguém tinha ido me visitar e eu me acabava de tanto chorar, ás vezes meu padrasto ia até o orfanato no dia da visita e deixava na portaria uma lata de goiabada e um pedaço de queijo minas ou maçã.
Talvez por isso não goste muito de maçã. 

De outras vezes a irmã da cozinha, acho que o nome dela era Alexandrina, me dava um pedaço de rapadura pra eu parar de chorar. 
Capela
O dia a dia no orfanato era:  acordar as 5:00 hs da manhã tomar uma banho frio, assistir a missa na igreja local. 
Depois ir para o refeitório tomar café, pão com manteiga e um copo de leite com café.  
Era um refeitório bem grande, com muitas mesas.

Refeitório


O almoço quase sempre era arroz  com feijão e dobradinha, a janta sempre foi sopa de feijão, pelo menos foi o que ficou em minha memória, não me lembro de ter comido outra coisa, a não ser em dias especiais como no natal, acho que comi frango não me lembro bem.

Depois do café fazíamos a limpeza do orfanato. 
As maiores faziam a limpeza pesada, as menores a limpeza mais leve.

O serviço era distribuído entre varrer, lavar roupas, limpar banheiro, passar o escovão no chão, tirar o pó do corrimão das escadas, dos moveis e algumas meninas iam para a cozinha ajudar a fazer o almoço.

Depois da limpeza, era a hora de estudar. 
Gostava muito das carteiras que tinham um compartimento para guardar o material escolar.
Todos os móveis eram de cor escura.
Depois de estudar, íamos para o pátio brincar e esperar a hora do almoço.


Pátio

O pátio era enorme e se dividia em dois, de um lado ficava um local mais aberto com poucas árvores e do outro ficavam os brinquedos de parque, os  balanços, a  gangorra,  e algumas árvores frutíferas, frutas que nunca mais vou esquecer como o pé de  sapoti, carambola, manga, tamarindo e jaca. 

 Olha eu  na foto acima com um papagaio no ombro. 
Não lembro quem tirou esta foto nem do momento, mas me emocionei muito quando vi.

Tinha também o galpão com um palanque nos fundos para apresentação de palestras e teatro.


Eu tinha tanto medo desse galpão a noite. Ele não era assim como está agora todo pintadinho de cor clara, ele era todo de  cor escura e parecia que moravam monstros atrás do palanque.


Lembro que algumas meninas brincavam de médico atrás do palanque no horário da noite, não entendia muito bem o que elas faziam, só sei que tinha a sensação que estavam fazendo alguma coisa errada algo que as irmãs diziam que era do demônio.
No outro dia aquelas meninas eram chamadas a atenção e deviam receber o castigo pelo que tinham feito.
Hoje entendo muito bem, estavam descobrindo a sua sexualidade. 

Um dia correram atrás de mim pra me levar para trás do palanque  para me dar beijo na boca, corri até ficar cansada, não deixei me beijar na boca, senti nojo, sempre segui a risca os ensinamentos das irmãs.

Tinha medo de tudo, medo do escuro, medo de barulho,medo do que via, do que não via, medo
de ir ao banheiro a noite, medo dos morcegos que ficavam chupando os sapotis maduros quando anoitecia.  

Dormitório, está sem as camas

O  dormitório era imenso e fantasmagórico, morria de medo de levantar a noite pra ir ao banheiro e fazia xixi na cama, fiz xixi na cama até os 7 ou 8anos, depois tinha que ir pra lavanderia lavar minha roupa de cama mijada.


Minha imaginação era fértil, ouvia barulho e ruídos de tudo quanto é tipo, via vultos, fantasmas....

Bom mesmo eram as brincadeiras de roda, as cantigas, os jogos de  queimada, o pique esconde, amarelinha, pula corda, as festas juninas e o balanço. 


Na maioria das vezes brincava sozinha com meu boneco parapedro, fazia roupinhas pra ele e colocava ele numa caixinha de sapato. Meu sonho era ter uma boneca Susi que dobrava as pernas e os braços porque o parapedro era muito duro. 

Um dia ganhei uma boneca de plástico sem cabelo, em vez de ficar feliz, fiquei revoltada e falei enquanto chorava e berrava:
- Papai Noel pobre, não pode nem me dar uma boneca cabeluda!
Agora a febre é a boneca Barbie.

Depois do almoço, mais um pouco de brincadeiras. Depois o sinal tocava, era hora de aprender algum trabalho manual ou aprender a tocar algum instrumento musical.

Tinha aulas de bordado com a irmã Terezinha, costura, tricô, crochê com a irmã Agnês, violão e piano.
 Irmã Agnês sempre ficava no pátio tomando conta da gente e fazendo crochê. 

Na musica me encantei pelo piano, mas tentaram me ensinar violão. Também nunca pedi pra aprender tocar piano e nunca me interessei em aprender tocar violão.
Ia para as aulas de violão a contra gosto, achava um saco ficar batendo nas cordas uma vez pra baixo e duas pra cima as mesmas notas musicais, as mesmas musicas, treinando posições e ainda por cima me deixavam sozinha numa sala enorme.
Eu não sabia se tocava ou se ficava quietinha morrendo de medo.


Tinha uma garota que estudava na minha turma  que não era do orfanato, ela ia pra casa todos os dias.

No dia do aniversário dela  a irmã Rosita, na época minha professora, ia levar a turma para comemorar o aniversária na casa da dita garota, a irmã  gostava muito dela e eu ficava com ciúmes. 
Não sei o que aconteceu que a irmã me chamou a atenção e disse que eu não iria ao aniversário da garota, então eu bati os ombros como quem diz: "azar", não to nem ai!.
 Foi o suficiente pra eu levar uma surra.


A irmã me levou para o quartinho das vassouras, tirou o seu chinelão de couro e me deu umas boas chineladas, não doeu nada, diga-se de passagem. 

Fiquei bastante magoada. 

Depois ela  pediu pra eu não falar nada com ninguém e não falei mesmo. 
A partir daquele dia nosso relacionamento mudou, eu gostava muito dela antes da surra e depois fiquei muito magoada e  não falei mais com ela.

Não entendia porque estava no orfanato.
Eu era triste, revoltada, gaguejava, tinha as pernas tortas os dois pés virados pra dentro, usava uma bota ortopédica para endireitar meus pés e chutava todo mundo que me aborrecia.

Quando tirava as botas, as meninas aproveitavam pra me chutar de volta e minhas pernas inchavam.


Minha mãe morava em Caratinga - MG, meu padrasto me trouxe para o Rio de Janeiro na intenção de me colocar no orfanato, por isso ela não me visitava, a distância era longa.

Hoje entendo que foi a melhor coisa que podia ter me acontecido diante das circunstâncias em que vivia.
 
No orfanato tive uma boa educação, aprendi a palavra de Deus, aprendi a rezar e agradecer tudo a Deus, (obrigada, mas aprendi). 
Aprendi a respeitar as pessoas, aprendi a fazer trabalhos manuais os quais me tirou do sufoco várias vezes na minha vida adulta, quando faltava dinheiro para as necessidades, primordiais da sobrevivência. 

Fazia toalhas de mesa, casacos, biquínis de crochê e vendia, fazia também pequenas costuras, consertos em roupas  e ia ajudando em casa.

Irmãs do Sagrado Coração de Jesus


Obrigada Deus e obrigada as irmãs Rosita, Custódia, Adelaide, Florice, Agnes, Alexandrina, Rosalbina, Angélica, Terezinha que me ensinou a bordar e outras que vou citar a medida que for lembrando.

Sala de bordado
Quando ficava doente tinha que ir para a enfermaria. Tinha um medo danado da enfermaria, ainda mais quando eu ficava sozinha.


Enfermaria


Escada que subia para enfermaria

Na subida da escada que dava acesso a enfermaria eu já ficava assustada, quando tinha que pernoitar então, era o pesadelo.
Me aplicaram tanta injeção que tenho um lado do bumbum mais baixo que o outro.


Tinha uma amiga que sempre brincava com ela, a imagem dela é um pouco embasada na minha mente, mas me lembro nitidamente de brigar com ela no galpão, o nome dela era Rosa, eu  a chamava  de Rosinha.
Gostava muito dela, não sei porque brigamos.

Lembro também de Sueli e de uma saia envelope xadrez de flanela  que ela usava, e Marisa 36 que reencontrei muito tempo depois de ter saído do IJAA, ela foi no apartamento que eu morava em Copacabana.
 Poxa..  Gostaria tanto de me  lembrar de mais meninas.


Quando irmã Custódia tocava o sinal, era a hora de formar a fila. Ela tocava o  sinal  pra almoçar, jantar, estudar, trabalhar ou qualquer outra atividade.
Fizemos até uma musiquinha pra ela:
" O quartel pegou fogo irmã Custódia deu sinal, acode, acode, acode a Bandeira Nacional “

Tinha também música pro Sr. Waldemar:

"Seu Waldemar numa noite de lua pegou papel e foi ca... na rua..." o resto não lembro.
Sr.º Waldemar é o primeiro quadro da esquerda pra direita, ele tinha um nariz de batatão que me impressionava, tinha um pouco de medo dele. Acho que ele ajudava a Instituição com donativos.


Colocando na balança, vivi mais coisas boas do que ruins.
Tem imagens que quando vejo meu coração chora de saudade.



Pátio

Essa acima é uma delas.

Brinquei tanto neste local, tanto no galpão quanto no pátio. 

Sempre sonho voando por entre as árvores, indo de um pátio a outro.

 Acordo muito feliz. 

Esse sonho sempre se repete.


Sótão 



Tinha um sótão que era muito macabro, era bem grande, em uma das salas eram feitas as hóstias para a comunhão.

Um dia a irmã que fazia as hóstias faleceu, ela já era bem velhinha. 
Não sei por que no dia do enterro eu chorei tanto, tanto, de soluçar e nada me fazia  parar de chorar, eu nem gostava tanto dela assim, chorei o dia inteiro, vai entender.


Gostava da janela do sótão achava parecida com a janela de um navio pirata.

Era proibido entrar no sótão, mas eu entrava assim mesmo e ficava morrendo de medo , era assustador, era escuro, silencioso, dava medo.

Um dia um time de futebol foi jogar bola num dos pátios e eu fiquei apaixonada por um rapaz que usava um cordão com um crucifixo pendurado no pescoço. Coisa de criança, eu devia ter uns 9 anos.

Sei que todas as meninas devem ter bastante histórias pra contar e todas devem ter suas lembranças e um sentimento guardado no peito, uma mistura de alegria, tristeza, saudade, talvez até um pouco de trauma.
Agora uma coisa é certa, tivemos infância, brincamos muito, nos divertimos pra valer.


Não entendo porque esqueci o dia em que saí do orfanato, me lembro nitidamente o dia que cheguei mas, o dia que saí esta apagado da minha memória. Estranho porque deve ter sido o dia mais feliz da minha vida e não me lembro de nadinha.

Quero pedir perdão a Rosinha por ter brigado com ela, éramos tão amigas....deve ter sido o estresse de estar no IJAA. 
Não me lembro qual foi o motivo da briga mas, deve ter sido por alguma bobeira de criança. 
Perdão minha amiga onde quer que você esteja.





Primeira comunhão